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O JA convidou-me para escrever sobre a independência na Arquitectura. Nos círculos académicos da teoria da arte e da arquitectura, “independência” é frequentemente descrita como um estado de “autonomia”. Autonomia é um termo com uma grande carga semântica, que é reclamado tanto pela esquerda como pela direita. À esquerda, a autonomia é um pré-requisito para se ser crítico, pois confere uma posição independente de vantagem sobre a sociedade e a economia. À direita, a autonomia é respeitada por separar a arte da sociedade e da economia. Suspeito que, na sua prática, os arquitectos considerem muito pouco provável a possibilidade de qualquer destas versões de autonomia, de tal forma a arquitectura está enredada em mecanismos de controlo material, social, económico e cultural; e para um historiador como eu, é exactamente isso que torna a Arquitectura a mais fascinante das artes. Porém, muitos historiadores de Arte poderão discordar, e certamente também existirão muitos arquitectos frustrados pela impossibilidade da independência absoluta, da autonomia, e por isso se lançam num mundo virtualmente autónomo de modelos, escalas e paletas de cores.
     Entretanto, Deus nos perdoe se nos referirmos a essa autonomia relativa do arquitecto, à sua aura de independência qualificada, como caracteristicamente “liberal”. Contudo essa é exactamente a palavra utilizada no convite que recebi do JA, que me pediu que discutisse a Arquitectura enquanto algo de “independente, em especial no antigo sentido do termo liberal – a arquitectura enquanto profissão liberal... liberal por oposição a servil, mecânica”. Mais adiante, o convite interroga: “Poderá uma disciplina tão dispendiosa e vasta como a Arquitectura, fora casos excepcionais, depender da decisão arbitrária de uma só pessoa ou de um grupo de pessoas? Ou será que um pouco de “realismo”, um pouco de controlo da sociedade sobre as vontades pessoais mais ou menos inerentes a essa ideia de independência pessoal, seriam bem-vindos?”
     Esta é, para mim, uma pergunta oportuna, pois abordei recentemente questões semelhantes num capítulo que escrevi para uma colecção nova, Neo-avant-garde and Postmodern, publicada para coincidir com a nova exposição itinerante do Yale Center for British Art, sobre James Stirling. O meu capítulo traça uma genealogia teórica e histórica desde as correntes do pós-guerra em torno do Independent Group, na Grã-Bretanha (incluindo Stirling e figuras como Reyner Banham e Alison e Peter Smithson), passando por grupos como o Archigram, na década de 1960, até aos chamados “arquitectos projectivos” de hoje (cujo me-lhor exemplo se encontra na neo-avant-garde holandesa, encabeçada pelo OMA). Trata-se, em certos aspectos, de uma genealogia evidente, ainda que não seja normalmente assim enquadrada, e refiro-me a ela, na sua totalidade, como “modernismo projectivo”. Se o modernismo projectivo realmente existe, os seus partidários acreditam que o design inovador opta por entusiasmar o público com a arquitectura, aquilo de que ela é capaz, e o seu futuro, ao invés de encorajar a crítica aberta à arquitectura e ao mundo que ocupa. O modernismo projectivo postula o design como modo de pesquisa das relações da arquitectura com a ciência, a tecnologia, a economia e a arte contemporânea. A tendência também existe por força daquilo que sabe não ser: não aceita que a transformação e o efeito transformativo da arquitectura terminou, nem que venha jamais a ter fim. O modo como abraça o avanço da energia, matéria, economia, forma, sociedade e tecnologia transporta consigo a arquitectura, sem limites e num estado de permanente transformação.
     E, bem vistas as coisas, esse entendimento é, em muito, semelhante, não às interpretações da autonomia, sejam elas de esquerda ou de direi-ta (interpretações essas que têm animado o debate académico em torno da independência da Arquitectura, especialmente nos Estados Unidos, desde a Segunda Guerra Mundial), mas sim às convicções liberais do século XIX. O modernismo projectivo da arquitectura contemporânea é liberal tanto artística como politicamente, pois mesmo alinhando com a modernização, a maioria dos arquitectos contemporâneos resiste a ser impelida para uma relação com a modernidade puramente reflexiva ou tendenciosa. Eu sei que estou a dar um salto considerável das artes liberais para a política liberal, isto é, da promoção de um currículo humanista para a promoção de um programa político dedicado à liberdade e ao progresso. Mas essa correlação não é leviana se nos lembrarmos da ascendência cultural e intelectual partilhada pela filosofia política liberal e pelas artes liberais, desde a tradição clássica europeia, passando pela universidade medieval, até ao Iluminismo e à esfera pública burguesa. Por vezes, os críticos académicos contemporâneos abordam a tradição crítica como se esta fosse exclusiva de um compromisso ideológico socialista e não algo sustentado pelos intelectuais ocidentais “plebeus”, enquanto estrutura de funcionamento geral, socrática, que harmoniza e minimiza perspectivas em conflito, permitindo ao mesmo tempo que essas perspectivas existam e possam até florescer. Seja como for, essa reunião de pensamento independente tipifica os ideais das constituições, imprensa, educação e artes da burguesia liberal. Se os críticos se mostram muitas vezes avessos a esta prevalência de liberalismo no seio das artes liberais, já os arquitectos não parecem ter a mesma atitude, e se nós aceitarmos que a arquitectura dominante dos nossos tempos cada vez mais “neo-liberais” é ela própria “liberal”, ser-nos-á mais fácil fazer perguntas sobre o que podemos esperar da arquitectura e dos arquitectos.
     É de notar, na frase precedente, a minha utilização do plural “nós”, como se acreditasse poder dirigir-me a um qualquer sujeito colectivo, ou como se estivesse a tentar aliciar os leitores do JA para partilharem o meu ponto de vista – uma clássico ardil liberal. Ao usar o colectivo, é como se estivesse a escrever antes de a revolução cultural pós-moderna ter fragmentado a subjectividade colectiva, as normas colectivas, as preocupações colectivas. Na verdade, o meu apelo ao colectivismo parece chocar com um “modernismo projectivo” que transmite uma estética de “instabilidade”, apropriada a uma era sem sujeitos, normas, preocupações e identidades estáveis – aqui convém talvez recordar a Casa da Música, no Porto, que dir-se-ia poder ser tombada e levada, a rebolar, dali para fora por alguém com suficiente determinação. Dada a relutância do “modernismo projectivo” em territorializar de forma aparentemente estável e firme, reivindicando valores e convicções duradouros, é fácil considerar que a sua estética é cínica. Esta suspeita é aparentemente confirmada pelo volume imenso e desapiedado de dados em forma livre, publicados com suposto contentamento pelos arquitectos envolvidos (sendo a obra do OMA, S, M, L, XL, de 1997, um clássico exemplo disso). Mesmo aqueles que admiram a estética do “modernismo projectivo” fazem-no, em parte, pelo realismo inabalável da Arquitectura: esta curva-se pragmaticamente perante a tempestade de dados brutos, mostrando-nos um mundo sem valor para além da matéria e suas economias.
     Contudo, eu tenho dificuldade em ver todos estes edifícios como expressões de cinismo, ou como puramente esculturais, no sentido basicamente autónomo defendido pelos que advogam a “forma” na arquitectura contemporânea. O que me detém nestas obras é um certo realismo que me atormenta a consciência, lembrando-me as minhas esperanças esmorecidas de construir um mundo ideal e, subsequentemente, os meus conluios com o mundo tal como ele é. Aquilo que mais recordo ao contemplar a Casa da Música ou outras grandes encenações, como o edifício do OMA para a CCTV, em Pequim, é o género artístico chave da intelligentsia liberal oitocentista – a peça de salão. Hoje, ao recordarmos a arte de salão é provável que a consideremos regressiva: a pornografia soft de Courbet (O Sono, 1866) permanece na galeria juntamente com a boa consciência de Um Enterro em Ornans (1850). As pinturas gigantescas da mitologia, da forma humana ideal e das vitórias do Estado francês representam a arte de salão, da mesma forma que A Jangada do Medusa (1818-19), de Théodore Géricault. Mas é da Balsa que me lembro ao observar o contorno do edifício da CCTV e, mais significativamente, ao contemplar as implicações desconcertantes do edifício.
     Como qualquer observador liberal teria compreendido na altura da sua primeira exposição, A Jangada do Medusacontinha uma acusação na sua pirâmide despedaçada de náufragos desafortunados; expressava uma preocupação com a alegada lassidão de carácter dos franceses e do seu Estado. Colocava, perante o olhar escrutinador do público, complexas “coisas preocupantes” (pedindo emprestada uma das minhas expressões favoritas do antropólogo francês Bruno Latour). Tais expressões de preocupação tinham um papel cívico na arte de salão liberal. E apesar de todos os meus receios em relação aos edifícios do OMA (e à arte de salão do século XIX, bem como ao liberalismo), prefiro a CCTV enquanto obra visível que podemos usar como objecto de uma lição, como algo que incita à descoberta e à discussão de coisas preocupantes, a vê-la permanecer uma instituição que manipula a economia da informação de forma invisível e sem suscitar críticas. A mera forma da sede da CCTV é por si só inquietante e as suas galerias públicas convidam todos a uma inspecção: aqui o OMA recorda a tradição da intelligentsia liberal crítica. Compare-se isto, por exemplo, com a proposta habilmente benigna de Amanda Levete para uma nova sede em Londres de um outro fabricante mundial de ideologias, a News International, na qual a monótona concentração de imprensa, internet, rádio, televisão e serviços financeiros ficará protegida por “fachadas matizadas pelo sol” como se se tratasse de “uma esfera pública abrigada” (http://www.guardian.co.uk/media/2008/jul/03/newsinternational.newscorporation).
     A estranheza da CCTV consegue capturar melhor as memórias da esfera pública liberal que a sedativa “escala marítima” e “constante paisagem ribeirinha” prometida pelos arquitectos e construtores da News International. A esfera pública de finais do século XVIII e do século XIX era muitas vezes desconcertante, com as classes sociais a acotovelarem-se e as plebes a ocuparem os novos espaços da tecno-cracia – das largas esplanadas nas avenidas rectilíneas, à galeria urbana e museu, ao átrio de hotel, parque público, terminal de transportes e café. Perante o desenvolvimento cultural, económico, extra-urbano, transnacional e tecnológico acelerado do presente, o modernismo projectivo tem, de novo, uma ambição cívica. Reinterpreta jocosamente as velhas tipologias da esfera pública, salas de espectáculos, bibliotecas, museus e interfaces de transportes, oferecendo-se como intermediário de instituições civis ameaçadas pela mudança ou extinção. Ao reciclar estas tipologias, o modernismo projectivo apela ao bom-senso do passado burguês e ao seu potencial para o futuro.
     O restabelecimento da esfera pública (dizimada depois da Segunda Guerra Mundial com o crescimento dos subúrbios, com início nos EUA) apresenta de novo a oportunidade para um nervoso e momentâneo nivelamento de classes. Fui um pouco recordado disso, durante a minha visita à Casa da Música, ao notar a preferência do OMA por longas filas de lugares indiferenciados. O único camarote exigido pelo cliente projecta-se estranhamente no nosso espaço colectivo, e encontra-se num local que talvez não seja o melhor do teatro. Faz muito lembrar o que Claude-Nicolas Ledoux pretendia em 1784, no seu teatro em Besançon, onde antecipou algo da revolução liberal iminente oferecendo lugares sentados para todas as classes sociais, com os balcões do teatro a representarem por sua vez um diagrama grosseiramente realista dos estratos sociais franceses. Como qualquer visitante pode observar, a Casa da Música parece um objecto vindo de outro lugar, um meteorito, como lhe chama um crítico: perplexo, o seu público reúne-se no exterior, aponta, ri talvez, mas depois fala, antes de se aventurar a entrar e a ocupar o seu lugar igualitário, com estofos prateados. No estilo habitual do OMA, é uma provocação regressar a um condensador social, como se tal fosse um conceito estranho na nossa sociedade atomizada.
     A minha descrição do edifício, e da recuperação da esfera pública, é um pouco romântica e idealista, mas apenas para reflectir mais intensamente o ardor com o qual o melhor da arquitectura contemporânea tenta escorar a esfera pública urbana numa era de privatização neoliberal. O modernismo projectivo parece claramente estar apenas a “roubar” o guião do neo-liberalismo. Por outras palavras, os arquitectos contemporâneos “pesquisam” os datascapes, as redes e fluxos do neoliberalismo tão brevemente quanto possível, fazem disso um grande espectáculo público, notam sem comentar os protestos de colegas das humanidades e outras áreas das artes liberais, e de seguida dedicam-se calmamente a projectar bibliotecas, salas de espectáculos, escolas, praças. Dessa forma, reconhecem as necessidades do mercado, mas restauram algo do progressismo social que desapareceu quando o termo “liberal” foi apropriado pelo liberalismo “clássico” e pelo neo-liberalismo, seu des-cendente. O que significa que a arquitectura liberal contemporânea mantém algo da sua ancestralidade modernista e da sua fé num futuro mundo globalizado.
     Não é de espantar que o liberalismo provoque a prostração da esquerda e da direita, dado que de algum modo conspira com ambos os lados, permanecendo porém céptico em relação às suas utopias opostas (mercados sem restrições à direita, igualdade sem restrições à esquerda). Pelo contrário, o sentimentalismo da arquitectura para com a esfera pública atribui-lhe o papel de árbitro entre o mercado e o bem comum. Enquanto “arte de salão”, a sua eficácia prática fica em muito confinada ao papel de provocação discursiva; é possível, por exemplo, imaginar que um visitante da Casa da Música queira saber se as longas filas de lugares idênticos se devem apenas à capacidade de audiência, e se interrogue sobre a relação entre esta nave espacial para as artes e o estado da cultura em geral – tudo coisas preocupantes e actuais que estimulam um debate muito necessário, embora o próprio edifício só em parte procure pôr ordem no mundo, e pareça suficientemente satisfeito com esse compromisso. Se o projecto da modernidade está inacabado, como sugere um projecto como o da Casa da Música, isso também significa que é perene, e que aguarda a nossa aprovação. As suas formas podem em parte ser entendidas pelo fascínio – semelhante ao da “arte de salão” – com a agitação do presente, servindo o design como clarificação conjectural, a partir do interior, das relações entre as coisas do nosso mundo.
     Certamente que os arquitectos envolvidos, e alguns daqueles que observam, têm plena consciência do impasse em que estamos. Rumores do desejo, entre os arquitectos mais jovens, de fazer mais e ir mais longe têm chegado das escolas de arquitectura e de gabinetes recém abertos. Diz-se que os arquitectos querem afectar o mundo de forma ainda mais directa, afectá-lo manifestamente, perdendo pouco tempo no debate de modo a mudar a realidade material, alterando a forma como vivemos e a forma como o mundo funciona. Incitado por uma suposta exaustão da teoria da arquitectura, pela ascensão do chamado design thinking, e pela calamidade da Grande Recessão, o impulso liberal da arquitectura aponta agora, talvez, na direcção de um total reformismo.|

 


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